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A HISTÓRIA NAS

LENTES DOS MOURAS

Para começar, quando falamos de fotografia, sabemos que são diversas as possibilidades de contribuições deixadas como forma de representação social de um tempo.  Por meio da fotografia, a memória é eternizada. Dessa forma, fotografia e memória vão se comunicando entre um tempo e outro. Seja qual for o tipo de registro ou acontecimento passado, sempre dará ao apreciador a possibilidade de resgate e reconstrução de uma época. Desse modo, podemos dizer que a fotografia guarda um valor importantíssimo de preservação e recuperação da memória.

Desde o seu surgimento, em 1826, a fotografia sempre esteve em constante transformação, tanto na sua estética quanto no seu aparato técnico. Já no início, as várias abordagens da fotografia exigia dos fotógrafos criatividade na profissão. Com os pioneiros da prática na cidade de São José de Campestre, localizada na região da Borborema Potiguar, Maria da Paz Cardoso de Moura e seu esposo, José de Moura Lima, iremos mergulhar nesse universo, fazendo uma análise sobre a relação da fotografia, memória e contribuição social, como também quais foram os desafios e dificuldades enfrentados ao longo dos 50 anos de atividade, passando pela transição do analógico para o digital e os avanços  tecnológicos com o surgimento dos dispositivos móveis.

 

 

 

 

D. Paizinha e Seu Zé Moura formam um casal, daqueles que sempre caminhou junto, unindo vida profissional a pessoal. Preservam em seus olhares cenas que foram eternizadas pela coleção de câmeras antigas que possuem. Cada equipamento tem uma história, que constitui e refaz a trajetória repleta de fatos marcantes e curiosos, como se fossem pedacinhos coloridos de um mosaico. Esses pedacinhos, juntos, formam a história nas lentes dos Mouras, considerados os fotógrafos mais antigos, que deram as maiores contribuições para a memória de São José do Campestre/RN.

São José do Campestre

o portal

Às 9h de um sábado ensolarado e pandêmico, eu, Galdina Carvalho - uma quase jornalista -, Anderson Moura, - neto do casal de fotógrafos e o meu parceiro na pesquisa do trabalho de conclusão do curso -, junto com Simone, companheira e amiga, que desde o início desse projeto se mostrou disponível para ajudar no que fosse preciso para a nossa pesquisa, nos acolheu em seu carro branco e pôs o pé na estrada, para o início da nossa jornada de produção experimental. Chegamos em Campestre por volta das 11h da manhã. Estacionamos na frente da residência n° 299, localizada numa rua estreita de ladeira levemente íngreme. A casa tem a arquitetura tipicamente preservada das cidades interioranas.

Conduzidas pelo neto dos retratistas da cidade e coautor deste material, subimos os dois batentes da calçada e entramos na varanda da casa. Fomos recebidos primeiramente por um pé de “comigo ninguém pode”, no canto da área, que dividia o espaço com um jogo de 4 cadeiras brancas de ferro no estilo “anos 60”. As paredes: com um revestimento de azulejo amarelo, com desenhos que lembram bordados Pensei: “finalmente estávamos diante do portal que nos levaria para outra dimensão”.

 

Do outro lado, a família Moura estava lá em peso, todos felizes e ansiosos com nossa chegada e, como de costume, para dar as boas-vindas, com o que é típico do aconchego interiorano: a mesa estava posta e farta. 

Os olhos da D. Paizinha expressava o mais puro amor e admiração pelo neto Andinho, levado por nós. Ela estava tomada de saudade, culpa de um percalço chamado “pandemia”, a qual restringiu as visitas mais frequentes do neto que mora na capital do Estado, Natal. “Meu neto é lindo”, disse a vovó orgulhosa. Ela se aprontou toda, sentada em uma cadeira de rodas, trajava um vestido xadrez azul. O cabelo estava preso em um coque impecável, sinais de uma senhora que, apesar dos problemas de saúde, causados pelo Parkinson, não dispensa uma vaidade.

Sentamos um pouco no jogo de estofados da sala, e, entre uma conversa e outra, os meus olhos passearam pelo espaço interno da casa: os móveis retrôs, pra não dizer antigos, mesclam com alguns outros mais modernos; os retratos estão por todos os lados, carregados de memórias. 

 

Anderson me chama até o quarto dos seus avós. Uma mobília de madeira escura decora o espaço, juntamente com as fotografias emolduradas e penduradas nas paredes. “Esses são os meus bisavós, pais de vovô, e os irmãos dele”, disse o neto Andinho, apontando para uma das fotos. Uma colcha amarela de crochê cobria a cama do casal, dando um contraste no quarto de piso antigo geométrico, que também ornamentava o espaço. O ambiente dava acesso a um outro. De longe, avisto uma espécie de estúdio fotográfico improvisado. Deduzo que Seu Zé Moura tinha levado o “Foto” para casa, com o objetivo de não parar no período de isolamento social, já que o estúdio estava fechado pelo mesmo motivo. O “Foto” era a denominação dada aos estúdios fotográficos na maioria das cidades do interior nordestino.

Alguém nos chama para almoçar, como falei anteriormente, a mesa estava realmente farta, tudo preparado pelo retratista da casa. Parece que, além de fotógrafo, o patriarca da família Moura tem talento para cozinhar. Tudo delicioso. Comi a melhor galinha da minha vida inteira. Faço elogios ao responsável pelo preparo e ele solta uma dica de ouro: “A galinha, pra ficar macia, leva limão. Se usar vinagre, ele endurece a carne”. Isso já foi direto para o meu livrinho de receitas e dicas culinárias. Sem dúvidas, as comidas do interior têm sabores diferentes; é difícil de descrever em palavras.

Todo mundo de bucho cheio, uma pequena pausa lá em casa de Josa, que é nora de Dona Paizinha. Sentados na sala moderna da casa, passamos a folhear alguns álbuns da família. Em uma das fotos, chama-me a atenção: um jovem, aparentemente portador de alguma síndrome rara, e pergunto quem é. Anderson diz que aquele é o sobrinho querido do seu avô, filho do irmão dele, que era da Marinha, de quem voltaremos a falar logo mais. Ricardinho foi um jovem que viveu muito em pouco tempo, até que, aos 26 anos a sua saúde ficou bastante debilitada. Por causa das complicações da síndrome rara que carregava, o jovem não resistiu e faleceu deixando todos os familiares pesarosos.

Então, todos relaxados pós-almoço, simbora! Hora de finalmente conhecer o “Foto Moura”. Máscaras nos rostos, afinal estamos vivendo uma pandemia, e precisamos nos proteger. Lá vamos, eu, Simone, Anderson e a prima Júlia (neta mais nova do casal de fotógrafos), descendo a ladeira de casas antigas campestrenses. 

Finalmente, estamos em frente ao prédio de fachada colonial antiga e preservada, criando um contraste interessante em uma rua comercial com diversos empreendimentos de fachadas contemporâneas. Na placa está escrito: “Foto Moura, o preferido, desde 1970”. Estamos diante de um outro portal, agora n° 724, que - se somados - é igual a 13, considerado um número de azar por muitas culturas, mas, para mim, o número da sorte.

Anderson passa a chave em uma das três grandes portas de madeira escura, a qual abre em duas partes, lembrando as casas de arquitetura holandesa. O portal estava aberto diante dos nossos olhos, mas, antes, eu preciso contar como tudo começou.

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50 anos de histórias

e registros

Exposição

casal revelação

Maria da Paz Cardoso de Moura é chamada carinhosamente de Paizinha, Natural de Santo Antônio. Ela é filha da dona de casa Maria Cândido Cardoso e do contador Tarcísio Cardoso. Seu esposo é José de Moura Lima, também conhecido por Moura. Ele é natural da cidade de São José do Campestre e filho dos agricultores José de Moura Lima e Maria Alves de Moura. D. Paizinha e Seu Zé Moura são os fotógrafos mais antigos em atividade do Município. Eles se conheceram no final dos anos 60, na mesma rua em que residem até hoje. A fotografia surgiu primeiramente na vida do Sr. Moura, como ele mesmo fala: “A fotografia na minha vida é uma história”. 

Após servir o Exército, já na década de 70, passou a pensar nas possibilidades de um novo trabalho, enquanto ajudava o pai, tocando a padaria da família, ali mesmo, na sua cidade natal. Com isso, ia juntando o dinheirinho, ganho pela ajuda diária. Porém, uma coisa ele sabia: dentro dele existia uma forte inclinação em atuar na área da Comunicação, fosse em fotografia ou rádio. Segundo ele, Deus abriu uma porta para que ele começasse com a fotografia. Foi quando o seu irmão mais velho, que servia na Marinha do Rio de Janeiro, trouxe uma máquina fotográfica e um gravador e deu-lhe de presente. 

Enquanto o jovem campestrense dava seus primeiros passos na fotografia, quase nos meados dos anos 70, no mundo afora a fotografia já era considerada instrumento de registro das novas gerações, com o olhar mais crítico, denunciando as mazelas sociais, a situação dos trabalhadores do campo (na época, conhecidos como bóias-frias), a violência policial, a degradação do meio ambiente e das cidades, os podres dos poderes políticos.

 

Na cidadezinha do interior, pouco tempo depois, lá estava ele, com a sua câmera na mão fazendo os seus primeiros registros do tradicional “Desfile do 7 de setembro”, declarando a sua independência profissional, prestes a viver outra experiência. Ele conta que, entre as pessoas, existia um rapaz com um equipamento diferente, fazendo diversos registros da apresentação: “Câmera era de monóculo e as fotografias saiam coloridas”, uma grande novidade para a época em que as fotografias em preto e branco dominava o cenário. 

Dias depois, o mesmo rapaz ofertou-lhe o repasse do equipamento, pelo valor de cem mil cruzeiros (Cr$ 100, 000.00, equivalente, hoje, a trinta e seis reais e trinta e seis centavos (R$ 36,36)). Sem titubear, foi pedir o dinheiro ao pai, o qual teve uma reação bastante negativa: “Essa profissão é de vagabundo, disse o meu pai”, relembra. 

Moura vivia em um período em que algumas profissões estavam em ascensão e a carreira militar era uma delas, já que o Brasil ainda vivia a Ditadura Militar, e tudo que oferecesse voz, empoderamento ou fosse mecanismo de denunciação à opressão existente era censurado. Não por acaso, era marginalizado; essa era a realidade daquele tempo.

Sem pensar em desistir, o jovem conseguiu o dinheiro com um agiota e adquiriu o seu primeiro equipamento comprado. Enquanto não quitava a dívida, a máquina ficou guardada no cofre de um colega. Um ano depois da compra, Moura resgatou a câmera, pondo em prática as atividades como fotógrafo amador. 

Daí em diante, não parou. Onde tinha um evento acontecendo, lá estava Moura fazendo os registros e vendendo os monóculos “Mas pra você ver, quando Deus quer... Eu não sabia a metragem da velocidade da máquina, não sabia a abertura da luz e nem sabia o ISO. Num são três coisas: ISO, velocidade e abertura? Eu num sabia nada disso. Só fiz botar o filme e mandei brasa, e deu tudo certo”, conta com orgulho. Nesse tempo, a então namorada Paizinha já ajudava cortando as fotos e montando os monóculos. 

 

 

 

 

Percebendo que as coisas estavam indo bem, esse jovem determinado tratou de comprar outros equipamentos para ampliar o negócio: “Eu vou é botar um ‘foto’, pra mim. Eu vou botar um ‘foto’, um estúdio que aqui não tem”. 

Em 1970, portanto, ele abre o seu estúdio fotográfico, o “Foto Moura”. Com a clientela crescendo rapidamente, equipou mais uma vez o negócio, dedicando-se cada vez mais, contando, inclusive, com a ajuda de alguns colegas, que ensinavam um pouco da parte técnica.

No dia 5 de maio de 1971, o José levou Maria para o altar, construindo uma história que já soma 49 anos, em que a trajetória familiar se mistura à profissional. A parceria no amor também é nas lentes, eternizando momentos de tantas pessoas e construindo a memória da cidade.

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O TEMPO E O CLIQUE

Parte do acervo de câmeras fotográficas dos Mouras

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1950

Kapsa “Pinta vermelha”

a era da revelação

Fotógrafos há 50 anos, o casal viveu os tempos áureos do analógico. Entrar no “Foto Moura” é fazer uma viagem pelo tempo da fotografia analógica. Com um rico acervo de equipamentos e fotografias feitas por eles, paramos para viver um momento de nostalgia. Bolsas de retratista, ampliador, câmeras, flashes de diversos modelos, rolos de filmes intactos, negativos aos montes e, para coroar, a maior das preciosidades, o “ouro do garimpo”: uma infinidade de retratos. Cada um deles é o resgate da memória de um tempo, reconta histórias de felicidade, tristeza, fé, alegria, saudade e acontecimentos marcantes dos campestrenses. Apesar do rico acervo de equipamentos preservados por eles, Paizinha e Moura não fazem ideia de quantas câmeras já possuíram, mas garantem que foram muitas. 

Moura é bastante enfático ao dizer que, no início, a profissão era sofrida. Primeiro, porque, diferentemente de hoje, que temos uma cultura de profusão de imagens, com a emergência dos telefones celulares e, mais adiante, dos aplicativos de redes sociais, as pessoas da época tinham um certo temor em ser fotografadas. Ele explica, orgulhoso, que “o povo num gostava muito de fotografia, não. Nós que fomos incentivando o povo”. Talvez os motivos tivessem relacionados ao fato de posar na frente de um equipamento ou de se ver em uma fotografia. Mas o real motivo mesmo não sabemos. 

Segundo, porque parte da clientela dava uma canseira nos profissionais, que percorriam longas distâncias, carregando os seus equipamentos pesados para fazer as fotos e, ao chegar no destino, encontravam os clientes até dormindo. “Paizinha saía daqui, com aquela bolsa marrom (aponta para a bolsa), e, muitas vezes quando chegava no local, tinha que esperar ou voltar outro dia para bater a foto”.

 

Mas a rotina do Foto era bem movimentada. Quando não estavam realizando trabalhos externos, atendendo aos clientes, existia a demanda interna, no estúdio. D. Paizinha, por exemplo, fazia os registros das ditas “fotos 3x4”, e Moura, no laboratório, revelando-as. Quando não dava para realizar esse processo, ele tinha que se deslocar para revelar nos laboratórios em Natal, distante a 105,2 km da cidade de São José do Campestre.

Nas paredes do Foto, entre os diversos retratos revelados e emoldurados, Moura exibe orgulhoso o certificado da profissionalização de: fotógrafo. Foram muitos anos praticando, aprendendo com equipamentos que estavam em constante evolução, até adquirir a técnica da profissão. 

Eram tempos difíceis e se profissionalizar numa cidade do interior era algo impossível para a realidade da época. As pessoas tinham que se mudar para a capital e só assim conseguir se especializar em alguma área profissional. Foi então que, em 1978, surgiu a oportunidade de fazer um curso de aperfeiçoamento da técnica, à distância, oferecido pelo Escola Associada, que interessou o jovem fotógrafo. 

Ao receber todo o material, começou a estudar, com a dificuldade de conciliar tudo, e também passou a compartilhar o material com sua esposa, para que ambos fossem adquirindo mais conhecimentos sobre o ofício: “Aí, nós dois íamos estudando o curso da Escola Associada. O curso servia para nós dois, mas o diploma só veio pra mim”. 

 

 

Moura afirma que os trabalhos só cresciam. O povo começou a se habituar e perdeu em definitivo o medo de ser fotografado. Famílias, religiosos, políticos passaram a solicitar com frequência os serviços fotográficos do casal. Prova disso é o grande arquivo de fotografias e álbuns, os quais encontramos no Foto e na residência do casal. A primeira impressão que tive, quando observei as fotografias encontradas no estúdio, foi a diversidade de linguagem contida nelas, muito significativas. 

Interessante que as inúmeras fotografias de pessoas mortas se destacam entre as outras de eventos culturais, religiosos, políticos, familiares e da cidade. Pela quantidade de registro, parecia ser algo rotineiro durante um longo período, registrar moradores dentro do caixão. O que, talvez, pode parecer sinistro para os dias de hoje, lá, em Campestre, “o povo queria guardar uma lembrança do morto”, pontua Moura. 

 

Durante a Era Vitoriana (1937-1901), bater retratos dos mortos e juntar-se a eles no registro, era uma forma de demonstrar admiração e amenizar a dor da perda, daí a justificativa para tantos registros de mortos, o qual perdurou por um longo período do século XX. 

As lentes atentas dos fotógrafos registrava o cotidiano campestrense em desenvolvimento. Foram inúmeros e importantes registros. A chegada da água encanada relatado pelo fotógrafo, foi um marco histórico para a cidade, por exemplo, que até então era abastecida com carro pipa. Em 25 de setembro de 1988, foi inaugurada pelo então governador Garibaldi Alves, a adutora Monsenhor Expedito, levando pela primeira vez, água encanada e de qualidade para a população de São José do Campestre.

Moura relembra que “eles colocaram um cano com uma torneira na praça da igreja, Garibaldi abriu a torneira e o povo tomava banho festejando a chegada daquela água. Eu tava lá”. 

 

 

 

 

 

Quando pergunto ao casal campestrense quais foram os registros mais marcantes, ao longo dos 50 anos de profissão, seu Moura assume a fala e nos conta que foram muitos: assassinatos, o rompimento da ponte, a passagem de Frei Damião pela cidade, mas destaca, com ênfase, um registro feito por ele a pedido do então padre da cidade.

 

"O padre Normando, que já é falecido, me pediu para subir até o cruzeiro lá no alto da torre, para bater a foto daquele bairro. Pegou a foto e mandou para a Alemanha, para pedir um carro para ajudar aquele povo. A minha fotografia. Foto Moura tem em São Paulo... tem em todo canto... O padre era muito meu amigo, tomava café aqui em casa comigo". 

Em suas palavras, percebo não apenas o orgulho pela profissão que escolheu, mas também a satisfação de conviver com pessoas de diversas vertentes religiosas, sociais, políticas… Só para esclarecer, Moura é de uma família religiosa cristã evangélica assembleiana, um crente que poderíamos enquadrar como muito tradicional. Mas, claramente, a condição religiosa não o bloqueou para as vivências profissionais, inclusive fez até amizade com o padre, como vimos. E a fotografia foi o elo.

Foto Moura Campestre
Foto Moura
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a hora h do dsrl

"Moura, rapaz, porque tu num trabalha com o digital, que é muito melhor, rapaz? Eu disse: rapaz, eu e Paizinha num se dá, não", relatou Moura sobre um diálogo quando foi registrar o então Vice-Prefeito da cidade, Júnior Paiva. Batidas na porta da frente do Foto Moura, é a tecnologia digital, causando um grande impacto na rotina profissional. 

Para alguns, parece até fácil, mas, para o casal retratistas, essa transição não foi. A começar pela mudança da câmera. A ajuda veio do filho Jobson. Juntos, partiram para Natal em busca de uma ferramenta de trabalho, na loja do irmão Marcos. “Irmão Marcos, será que o senhor conseguia uma máquina digital pra mim, para o começo?”, conta Moura. Foi quando sugeriram: “A D60 dá para você Moura. Ela é pequenininha; dá pra fazer as fotos no interior”. 

Entendendo que essa transição exigiu uma adaptação forçada, pergunto qual foi a maior dificuldade ao usar pela primeira vez uma digital, e a resposta veio certeira: “A dificuldade foi que eu não conhecia, minha filha. Não conhecia. Nem eu e nem Jobinho [filho]. Nós fomos bater umas foto de uma quadrilha, e, quando chegamos lá, nada da máquina bater. Quando fomos olhar, a bateria tinha descarregado”, relembra. 

Ainda assim, Moura revela que, mesmo diante de algumas dificuldades iniciais, as mesmas não foram motivos para pensar em desistir da profissão. Bastante emocionado ele define: “A fotografia é a minha vida! Eu fico doente, eu choro, quando entro neste estúdio. Foi aqui que eu fiz tudo na minha vida. Casei, comprei casa, carro, criei esses três filhos. Eles cresceram, foram alimentados, eles me ajudaram, mas nenhum se dedicou à fotografia”, lamenta Moura, revelando que nenhum dos filhos dará continuidade ao seu legado. Mas essa é uma questão que abordaremos depois.

 

Aos poucos, o fotógrafo foi aprendendo e passando as novas habilidades digital para a esposa. Um processo que durou praticamente um ano. Entre vantagens e desvantagens, seu Moura observa que "o interessante é que, antes, com a analógica, a gente perdia pouca foto. Agora, com a digital, perde tanta foto. O povo sai com os olhos fechados demais. Por Deus que nós apaga e faz outra".

Na era digital, fatores como a rapidez e a instantaneidade têm seus ganhos e perdas. As pessoas têm o acesso imediato ao registro e o seu descarte na mesma velocidade, basta não agradar, para que a imagem seja apagada. Faz parte da liquidez dos processos contemporâneos.

Recentemente, eu fiz um curso online de fotografia com smartphone, ministrado por Canindé Soares, paisagista, fotojornalista e documentarista. Na primeira aula, ele falou superficialmente do seu início com a fotografia. No mesmo instante, lembrei da nossa pesquisa em andamento e me senti convidada a saber um pouco mais sobre. Entrei em contato por mensagem e perguntei se ele aceitaria o convite para uma entrevista. Ele aceitou, marcamos o encontro no apartamento da Simone, localizado no bairro de Lagoa Nova, metade do caminho, entre a zona norte de Canindé e a minha zona sul. 

Recebi o fotojornalista numa terça de setembro. Ele é um sujeito simples, de voz baixa e bastante sorridente. Durante a entrevista, a transição do analógico para o digital foi a pauta principal. Ele diz que foi um desejo realizado. Trabalhar com a fotografia digital sempre esteve em seus planos.

Começou com a fotografia na fase da revelação, no final dos anos 70, época em que o processo fotográfico era feito de maneira bem rústica, em um laboratório escuro, com filme, obdecendo os passos para a revelação. 

Para revelar fotos em preto e branco, o profissional precisava montar um laboratório, para fazer as revelações. Já no caso das fotografias coloridas, o processo era outro. O filme era enviado para um laboratório em São Paulo e se esperava oito dias pela revelação. 

 

 

 

Será que as pessoas daquela época não eram ansiosas como as de hoje? Todo processo de hoje é rápido: registro feito, visualizado, apagado, repetido, novamente visualizado; tudo em poucos minutos. Esperar oito dias por uma revelação na sociedade de hoje seria uma verdadeira tortura.

“Eu gosto das tecnologias pelas facilidades, pela praticidade... O processo fotográfico, quando eu iniciei, era muito sofrível… Eu sempre fui muito imediatista, sempre gostei dos resultados rápidos e práticos, então a mudança para digital, pra mim, foi muito tranquilo. Eu sempre tive muita facilidade para aprender e costumo dizer que nem lembro que a fotografia convencional existiu”, pontua o fotojornalista. 

Diferentemente, Zé Moura relembra dessa época como um tempo bem vivenciado. Tenho a sensação de que a cada relato do fotógrafo, em minha mãos, recebo pedaços de memórias armazenadas em filmes.

A tecnologia mesmo como um “simplificador”, não toma o papel do fotógrafo. A figura do fotógrafo continua sendo fundamental. Ele é o homem do seu tempo. É ele que tem a sensibilidade no olhar de captar momentos, de ser um contador de histórias e um guardião de memórias. É o fazer, o transmitir. É eternizar o olhar da sua realidade no seu contexto. 

Para o casal Moura, essa afirmação não foi diferente. Segundo eles, ao longo de suas vidas, estiveram presentes na vida de tantas pessoas, foram espectadores de diversas cenas, as quais, hoje, se valem de contar inúmeras histórias.

 

A esse respeito, Ângela Almeida, professora da UFRN, jornalista, escritora, artista plástica e pesquisadora, destaca bem a importância que os acervos, como o dos Mouras, têm para a sua cidade de São José do Campestre.

  

Além da relevância social também, ela diz que “as imagens carregam, em si, a identidade cultural de uma cidade e seus símbolos culturais, a sua simbologia, então, a partir daí, a fotografia não serve apenas para a comunidade se rever, mas como para a comunidade se identificar, para ter uma identidade. Daí, a importância”. As fotografias, tanto analógicas quanto digitais, transportam-nos para um tempo passado e são um laço memória afetiva e social de uma sociedade. Nesse sentido, Moura relembra que, sempre aparece alguém da cidade em busca de alguma fotografia antiga, do seu acervo documental.

Na atualidade, observa-se que há um redimensionamento no trabalho de fotógrafo após o advento da era digital. A produção nesse ambiente exige o manejo de  softwares, para fazer o tratamento das imagens. Ou seja, o mercado da fotografia se reinventa e continua em expansão, vale acrescentar que com tantas mudanças a figura do fotógrafo, como já havia dito, continua sendo indispensável, vem dele a sensibilidade de captar os momentos.

Foto Moura
Mesa de luz

mergulhados nas

memórias: legado

O neto e coautor desse trabalho, Anderson, ao perguntar aos avós se eles gostariam que algum dos filhos tivesse seguido a carreira de fotógrafo, a resposta veio esperançosa: “Num tem você meu filho, seguindo?!”, aponta o avô todo orgulhoso. Andinho, como é chamado carinhosamente pelos avós, é muito talentoso, só que ainda não se rendeu à fotografia profissional, mas isso não impede que o vovô Zé Moura já o considere o seu sucessor. Ainda assim, não esconde o desejo que um dos filhos tivesse seguido a fotografia.

Jocelma, Joseane e Jobson, são os três filhos do casal Maria e José. Cresceram consumindo as vivências desse universo fotográfico. Fotos desses três por toda parte é o que não falta. O que teria faltado para que algum deles seguissem os passos dos pais? E lá fomos buscar as respostas.

Mais um sábado, dessa vez nublado, eu, Gal, Simone, aquela do carro branco, e Anderson, pegamos a estrada. Tínhamos pressa, era 31 de outubro, um fim de semana prolongado, por conta do feriado de finados, ou seja, estrada bastante movimentada. Outro detalhe nos preocupava naquela manhã. Além  de viver dias pandêmicos, tinha uma campanha política sendo tocada nas ruas, algo que de um certo modo poderia nos atrapalhar, tanto no deslocamento quanto na gravação das entrevistas. Vale salientar que, diferentemente das capitais, nas cidades do interior, os agitos pré-eleições  ‘fervem’ e são intensos.

 Em Campestre é assim: um tal de Bicudo pra cá e Bacurau pra lá; uns vestem vermelho e outros verde; a cidade se divide; as bandeiras estão espalhadas, hasteadas nas casas, revelando a preferência do morador. Os jingles dos candidatos são atração. O festival de hits ‘chicletes’, daqueles que grudam na mente, excedem nas quantidades e nas versões de sucessos. Tem de um tudo: sertanejos, forró, pagode, pisadinha, todo ritmo vira jingle. 

O sobe e desce de carros e motos nas ladeiras propagandeando não para. Pois bem, chegamos ao nosso destino, por volta das 11h. Dobramos a esquina da rua de ladeira, não deu outra: lá estava a rua tomada de manifestantes, ao som dos hits‘chicletes’. A meta naquela manhã era entrevistar os filhos e ir ao cruzeiro, localizado no ponto mais alto da cidade.

A recepção, mais uma vez, calorosa, com cheirinho de comida sendo preparada sentido na porta da sala. O sorriso de D. Paizinha e o almoço preparado por seu Zé Moura, tudo como da primeira vez quando estivemos aqui. Dessa vez, não hesitei, fui logo ligando a câmera e fazendo todos os possíveis registros no interior da casa. Hora de entrevistar os filhos do casal fotógrafo. O tempo estava correndo e a movimentação política na cidade só crescendo, podendo atrapalhar nossa programação de captar áudio e vídeo. 

Fomos nos refugiar no Foto Moura, preparamos o cenário, posicionamos as câmeras e play na entrevista. Diante de nós, os três filhos de Zé Moura e Paizinha. “Me sinto muito honrada por eles serem muito bem reconhecidos aqui na cidade de Campestre. Pelo fato de serem os primeiros fotógrafos e bem reconhecidos mesmo, registrando bastantes momentos”, revela Jocelma, 48 anos, dona de casa, filha mais velha do casal e mãe de Anderson. 

Nas falas iniciais dos três filhos, o sentimento de orgulho pela trajetória construída pelos pais é unânime e quase palpável. Joseane, 43 anos, servidora pública, carinhosamente chamada de Aninha pelos familiares, filha do meio, conta-nos um fato ocorrido naquela manhã. “Hoje, recebemos um senhor que foi bater uma foto 3x4 para se aposentar e ele relembrava que o meu pai bateu as fotos do casamento dele”. 

Os pais colecionam registros de várias gerações familiares, em uma cidade com um pouco mais de 13 mil habitantes. “Eles serem referência da fotografia, seja em qualquer ponto da cidade, prova o grande legado construído pelos meus pais na cidade”, enfatiza Jobson, 40 anos, filho mais novo do casal, professor da rede pública de ensino. Ele relata que recentemente, um grande admirador do trabalho da D. Paizinha, fez uma declaração em uma rede social, dizendo que a considerava  a “Primeira Dama da Fotografia” na cidade.

Está claro e nítido que nenhum deles trabalha com fotografia. Os herdeiros optaram por não seguir a trajetória profissional dos pais. Justificam que, talvez, tenha a ver com a percepção das grandes dificuldades que os pais enfrentavam para atuarem. 

Apesar de terem apostado em outros caminhos,  o orgulho que sentem pela dedicação dos pais é evidente. “Falou em fotografia em São José do Campestre, são eles: Zé Moura e Paizinha. Os precursores e a memória daqui”, enfatiza Aninha. 

À cada relato, percebo - por diversas vezes - que os olhares param o tempo presente e reviram o passado. Imagino que exista, dentro da cabeça de cada um deles, um rolo de filme, passando foto a foto, revivendo os momentos inesquecíveis da trajetória de vida da família Cardoso de Moura. 

Minhas lágrimas escorreram pelo rosto e Aninha se juntou a mim, sem esconder o choro. Bastante emocionada, ela diz que queria ter tido, lá atrás, uma melhor percepção do quanto seus pais representam para a cidade. “Teria sido diferente”, possivelmente ela estaria dando continuidade ao ofício dos pais. 

Apesar de não terem escolhido a fotografia como o emprego principal, isso não os tornaram isentos de estarem dando apoio aos pais, principalmente com a chegada da tecnologia digital. Jobson conta que, nesse período, os pais se sentiram um pouco temerosos com a novidade, mas não desanimaram, buscaram o conhecimento. 

Mesmo com algumas limitações atingiram o mercado digital, para surpresa de Jobson: “eu não imaginava que eles pudessem avançar, mas foi o contrário, se esforçaram e conseguiram”. 

O Foto sobreviveu à transição do analógico para o digital, diferentemente de outros que ficaram pelo caminho. O envolvimento dos filhos nessa transição foi essencial. Esse alicerce foi o combustível para que os pais não desistissem da profissão. Contudo, de toda forma, surgiram algumas dificuldades. Jocelma lembra que do envolvimento deles:“a gente ajudava de toda forma, estudando métodos de edição, trazendo novas propostas de ensaios fotográficos, cenários mais modernos, tudo para que eles não desistissem”. 

Incentivo, apoio e reconhecimento nunca faltaram nessa trajetória, a exemplo, Jobson destaca a figura de José Matias, então prefeito da Cidade, um grande incentivador e amigo do fotógrafo. Sempre contava com Moura nos eventos, alguns hoje considerados marcos históricos. Aninha resgata da memória, o dia em que os pais estavam registrando uma das passagens de Frei Damião: “a cidade enchia de gente, alguns conseguia se aproximar e eram fotografados pelo meu pai. Aquilo era surreal e eu não entendia muito”. 

 

 

 

 

 

No alto da cidade, tem um monte. Lá, foi construído um cruzeiro, que é uma espécie de santuário em homenagem ao Frei Damião de Bozzano. Ele era considerado o “Santo do Nordeste”. Realizava diversas missões religiosas pelo sertão nordestino. 

São José do Campestre era local de passagem e cenário para acontecimentos de alguns fatos curiosos, segundo seu Zé Moura, a cidade parava para receber o Frei. Ele sempre fazia a cobertura da passagem do “Santo” pela cidade. “Uma vez lá na fazenda de Theodorico Bezerra, eu fui fotografá-lo no quarto que ele dormia, quando eu entrei no quarto,  Frei Damião falou: fiquei sabendo que você é protestante. Eu disse: sim senhor. Ele acenou com a cabeça e autorizou que eu fizesse as fotos”. Outra vez, Frei Damião, estava mais uma vez hospedado na fazenda Irapuru de Theodorico Bezerra, líder político da região, e quem era chamado para registrar as imagens? Seu Moura. “Eu ia até lá fazer as fotos dele. Coronel Theodorico pedia pra bater várias fotos dele perto de Frei Damião e depois usava na política”. Segundo o fotógrafo, o coronel gostava de se exibir e ter esses registros para obter sucesso político. 

 

Essa importância do religioso se materializa na cidade, pois se olharmos para o alto de qualquer ponto da cidade, avistamos a estátua gigantesca do Frei Damião, vigiando todos na parte baixa da cidade.

Decidimos ir até lá e Jobson se disponibilizou para levar. No trajeto, cenas típicas da liberdade do povo no interior, que ressignifica esse tempo urgente da capital: pessoas participando de atos políticos de campanha, ocupando as ruas; um senhor tomado pelo exagero de bebida alcóolica, dançando no meio da pista no embalo do carro de som; moradores espalhados nas ruas e nas calçadas acenando e cumprimentando Jobson. Até que atingimos o cume: “Monte do Cruzeiro", o mesmo que, por inúmeras vezes, o fotógrafo Zé Moura subiu para registrar a vista panorâmica cidade como já relatado em texto anterior, quando o fotógrafo fala, que uma vez fez o registro para o Padre Normando enviar a fotografia para a Alemanha. 

No local, uma árvore, que parece uma algobeira divide o espaço entre os dois monumentos erguidos, mas não é uma árvore qualquer. O que a diferencia de outras da mesma espécie? Pendurados e espalhados pelos galhos, há dezenas de retalhos de tecidos, todos em tons de bege e marrom, que lembram as vestes usadas pelo Frei em suas missões, símbolo de devoção do povo local.

 

 

Quando chegamos mais cedo no Foto, Anderson me mostrava alguns álbuns. Neles, estavam os registros da tradicional Festa de Reis. Uma etiqueta escrita “Festa de Reis-2016” marca as fotografias de diversas famílias campestrenses. Nos eventos costumeiros de Campestre, o “Foto Moura” é parada obrigatória. Faz parte da tradição e “o movimento é grande”, diz Jocelma. 

A família, em peso, dá suporte nesses dias da festa, trabalhando incessantemente. Aproveitam ainda para obter lucro, e, assim, conseguirem manter o estúdio durante o resto do ano, fazendo fotos 3x4 e alguns pequenos eventos que aparecem. 

Em virtude da pandemia do novo coronavírus, que se estende por quase todo o ano de 2020, o estúdio do Seu Zé Moura se mantém com as atividades suspensas. Até a produção deste material, já são 8 meses. Esse ano, por exemplo, não presenciaram o habitual desfile de 7 de setembro, outra importante data de movimentação no estúdio. 

 

Jocelma fala que, durante esse tempo de isolamento social, flagrou o pai chorando:  “ele ainda não tá preparado para o fim das suas atividades de fotógrafo, talvez ele chore por isso”. Para Aninha, o pai não teve tempo de trabalhar o emocional para lidar com o dia em que não poderá exercer o que mais gosta de fazer. E dá para perceber que esse assunto é evitado. Em nenhuma das nossas conversas, seu Moura falou sobre o fim da sua atuação. 

Como dito antes, o Foto possui três grandes portas, as quais, segundo o fotógrafo, representam o “Pai, o filho e o Espírito”. Como é comum em quase todo nordestino interiorano, fé em Deus e coragem são dois itens que não faltam na vida do retratista campestrense. O Foto segue os seus dias, existindo até onde Deus permitir.

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Frei Damião
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“Mas pra você ver, quando Deus quer... Eu não sabia a metragem da velocidade da máquina, não sabia a abertura da luz e nem sabia o ISO. Num são três coisas: ISO, velocidade e abertura? Eu num sabia nada disso. Só fiz botar o filme e mandei brasa, e deu tudo certo”

José de Moura

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três gerações sob

as lentes dos mouras

​Mãe

Filha

Neta

Câmeras
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